Aqui deixo, por subscrever inteiramente, esta carta aberta da autoria de Luísa Assis, Miguel Teotónio Pereira e Vera Assis Fernandes.
"Maestro:
Goethe
escreveu: “[a música] é completamente forma e conteúdo e eleva e enobrece tudo
quanto exprime” (“Os anos de viagem de Wilhelm Meister”).
A
música, como toda a Arte, como toda a actividade humana, não escapa à polémica
e à controvérsia. Mas, dada a natureza que lhe foi assinalada por Goethe, mesmo
na controvérsia ela é universalmente aceite como uma linguagem universal. Os
séculos são testemunha dessa qualidade da música. Essa mesma qualidade, como de
igual modo os séculos sempre foram testemunha eloquente, é causa de uma outra
qualidade da música: ela promove a união – a união das comunidades e dos povos
–, mas também a união do indivíduo consigo próprio, e a união do indivíduo com
o outro indivíduo. Na sua “imaterialidade”, a música teve sempre força bastante
para vencer os particularismos, fossem eles históricos, geográficos ou étnicos.
A música enobrece, porque reconcilia e resgata, eleva, porque liga e une. Quando
a música desunir e aviltar, quando for instrumento de dominação ou de
arrogância, ela trair-se-á a si mesma.
As
pedras de Marvão são lindas, as paisagens encantadoras. Se isso é verdade, é
porque elas vivem num contexto humano. As pedras e as paisagens de Marvão são
mais obra das mulheres e dos homens do que de Deus. A paisagem humana é a maior
riqueza de Marvão. As pedras são consequência desta, e é só graças a ela que
brilham. Quem a ela não for sensível, das pedras e da Natureza só poderá ter
aquela visão que se tem das coisas mortas. E desperdiçará a grande
oportunidade: a de se incluir, harmoniosamente, nessa grande harmonia. Como as
coisas mortas, pôr-se-á a si próprio de fora, tal uma excrescência. Ora, essa
fatalidade está proibida a um espírito musical, que verdadeiramente o seja.
“Toda
a música não é mais do que uma sucessão de impulsos que convergem para um
definitivo ponto de repouso”. Esta frase é extraída da segunda das seis lições proferidas
por Stravinsky na Universidade de Harvard. Como seria belo que o Festival Internacional
de Música programado para Marvão para os finais de Julho deste ano pudesse ser
ele próprio um “ponto de repouso” de um conjunto de actividades – de “impulsos”
– de dinamização e de animação musicais que para ele convergissem! Actividades
locais, ligando e unindo colectividades populares, associações, organismos
juvenis. Seria talvez pedir muito. Mas seria talvez pedir muito aos homens, não
à música. Esta, enobrecendo, seria enobrecida.
A
população de Marvão foi totalmente arredada da preparação daquele Festival. Mas
verdadeiramente lamentável é o facto de a sua presença nesse festival não ser,
aparentemente, desejada. O cartaz que há cerca de um mês por todo o lado
(espaços públicos, cafés, etc), em Marvão, em Castelo de Vide, e noutros
locais, promove o Festival, é totalmente escrito em inglês – nem uma só palavra
na língua “nativa”. Ou seja: aparentemente, o Festival destina-se
exclusivamente a “estrangeiros”.
Sereis
o primeiro a reconhecê-lo: nunca o povo de Marvão fez qualquer distinção entre
“nativos” e “estrangeiros”. Essa distinção é agora introduzida a propósito de
um Festival de Música, e é introduzida por quem se sente em Marvão como em sua
própria casa, porque foi esse o espírito com que foi acolhido. Pergunte-se a si
próprio: tal cartaz seria tolerado no vosso país?
Esse
cartaz constitui uma ofensa ao povo de Marvão, mas isso não é tudo; constitui
uma ofensa ao povo português, mas isso não é tudo; constitui uma ofensa às
organizações locais e nacionais que acolheram e viabilizaram o Festival, mas
ainda isso não é tudo; constitui, acima de tudo, uma ofensa à própria Música, à
essência da Música. Em síntese: constitui uma ofensa ao Festival, porque este
Festival de Música está a ser promovido por um cartaz que é, basicamente, antimusical.
Não
avaliamos o grau dessa ofensa porque em tudo o que diga respeito à Arte não há
ofensas mínimas e máximas; em Arte, qualquer ofensa, mínima que pareça, é máxima.
Qualquer espírito musical, que verdadeiramente o seja, facilmente o
reconhecerá.
Maestro:
Em
Maio de 1906 um outro poeta de língua alemã – Rilke – escreveu uma dolorosa
carta ao seu venerado Mestre – Rodin –, em qual carta o Poeta tentou desagravar
uma ofensa que teria sofrido daquele. No final dessa carta, escreveu: “Nós
estávamos de acordo em que há uma justiça imanente na vida, justiça essa que se
cumpre lentamente mas sem falta; é nessa justiça que eu ponho toda a minha
esperança”.
Por
nosso lado, esperamos dos homens a reparação da ofensa que motivou a presente
carta; todavia, em caso de não ser suficiente a grandeza dos homens para que
isso aconteça, estamos certos de que as pedras de Marvão serão o garante de
que, tarde ou cedo, essa reparação se cumprirá.
Respeitosamente,
Marvão,
9 de Abril de 2014
Luísa
Assis
Miguel
Teotónio Pereira
Vera
Assis Fernandes "
2 comentários:
Pode ser que já não se realize!!
Assim ficamos mais satisfeitos. Eu até prefiro heavy metal!!
Na carta nada está escrito sobre o nao se realizar o Festival!! Na carta está escrito, e para que o Maestro tenha conhecimento, do que tem sido feito em nome do seu sonho, a desconstruccao da identidade dos Marvanenses!! Peco por isso que as pessoas que leem a carta, a interpretem, e releiem-na se necessário para melhor entender o seu conteúdo!
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