11 abril 2014

FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA DE MARVÃO – CARTA ABERTA AO MAESTRO POPPEN

Aqui deixo, por subscrever inteiramente, esta carta aberta da autoria de Luísa Assis, Miguel Teotónio Pereira e Vera Assis Fernandes.

"Maestro:

Goethe escreveu: “[a música] é completamente forma e conteúdo e eleva e enobrece tudo quanto exprime” (“Os anos de viagem de Wilhelm Meister”).

A música, como toda a Arte, como toda a actividade humana, não escapa à polémica e à controvérsia. Mas, dada a natureza que lhe foi assinalada por Goethe, mesmo na controvérsia ela é universalmente aceite como uma linguagem universal. Os séculos são testemunha dessa qualidade da música. Essa mesma qualidade, como de igual modo os séculos sempre foram testemunha eloquente, é causa de uma outra qualidade da música: ela promove a união – a união das comunidades e dos povos –, mas também a união do indivíduo consigo próprio, e a união do indivíduo com o outro indivíduo. Na sua “imaterialidade”, a música teve sempre força bastante para vencer os particularismos, fossem eles históricos, geográficos ou étnicos. A música enobrece, porque reconcilia e resgata, eleva, porque liga e une. Quando a música desunir e aviltar, quando for instrumento de dominação ou de arrogância, ela trair-se-á a si mesma.

As pedras de Marvão são lindas, as paisagens encantadoras. Se isso é verdade, é porque elas vivem num contexto humano. As pedras e as paisagens de Marvão são mais obra das mulheres e dos homens do que de Deus. A paisagem humana é a maior riqueza de Marvão. As pedras são consequência desta, e é só graças a ela que brilham. Quem a ela não for sensível, das pedras e da Natureza só poderá ter aquela visão que se tem das coisas mortas. E desperdiçará a grande oportunidade: a de se incluir, harmoniosamente, nessa grande harmonia. Como as coisas mortas, pôr-se-á a si próprio de fora, tal uma excrescência. Ora, essa fatalidade está proibida a um espírito musical, que verdadeiramente o seja.

“Toda a música não é mais do que uma sucessão de impulsos que convergem para um definitivo ponto de repouso”. Esta frase é extraída da segunda das seis lições proferidas por Stravinsky na Universidade de Harvard. Como seria belo que o Festival Internacional de Música programado para Marvão para os finais de Julho deste ano pudesse ser ele próprio um “ponto de repouso” de um conjunto de actividades – de “impulsos” – de dinamização e de animação musicais que para ele convergissem! Actividades locais, ligando e unindo colectividades populares, associações, organismos juvenis. Seria talvez pedir muito. Mas seria talvez pedir muito aos homens, não à música. Esta, enobrecendo, seria enobrecida.

A população de Marvão foi totalmente arredada da preparação daquele Festival. Mas verdadeiramente lamentável é o facto de a sua presença nesse festival não ser, aparentemente, desejada. O cartaz que há cerca de um mês por todo o lado (espaços públicos, cafés, etc), em Marvão, em Castelo de Vide, e noutros locais, promove o Festival, é totalmente escrito em inglês – nem uma só palavra na língua “nativa”. Ou seja: aparentemente, o Festival destina-se exclusivamente a “estrangeiros”.

Sereis o primeiro a reconhecê-lo: nunca o povo de Marvão fez qualquer distinção entre “nativos” e “estrangeiros”. Essa distinção é agora introduzida a propósito de um Festival de Música, e é introduzida por quem se sente em Marvão como em sua própria casa, porque foi esse o espírito com que foi acolhido. Pergunte-se a si próprio: tal cartaz seria tolerado no vosso país?

Esse cartaz constitui uma ofensa ao povo de Marvão, mas isso não é tudo; constitui uma ofensa ao povo português, mas isso não é tudo; constitui uma ofensa às organizações locais e nacionais que acolheram e viabilizaram o Festival, mas ainda isso não é tudo; constitui, acima de tudo, uma ofensa à própria Música, à essência da Música. Em síntese: constitui uma ofensa ao Festival, porque este Festival de Música está a ser promovido por um cartaz que é, basicamente, antimusical.

Não avaliamos o grau dessa ofensa porque em tudo o que diga respeito à Arte não há ofensas mínimas e máximas; em Arte, qualquer ofensa, mínima que pareça, é máxima. Qualquer espírito musical, que verdadeiramente o seja, facilmente o reconhecerá.

Maestro:

Em Maio de 1906 um outro poeta de língua alemã – Rilke – escreveu uma dolorosa carta ao seu venerado Mestre – Rodin –, em qual carta o Poeta tentou desagravar uma ofensa que teria sofrido daquele. No final dessa carta, escreveu: “Nós estávamos de acordo em que há uma justiça imanente na vida, justiça essa que se cumpre lentamente mas sem falta; é nessa justiça que eu ponho toda a minha esperança”.

Por nosso lado, esperamos dos homens a reparação da ofensa que motivou a presente carta; todavia, em caso de não ser suficiente a grandeza dos homens para que isso aconteça, estamos certos de que as pedras de Marvão serão o garante de que, tarde ou cedo, essa reparação se cumprirá.

Respeitosamente,

Marvão, 9 de Abril de 2014

Luísa Assis
Miguel Teotónio Pereira

Vera Assis Fernandes"

2 comentários:

Mac disse...

Pode ser que já não se realize!!
Assim ficamos mais satisfeitos. Eu até prefiro heavy metal!!

Vera Assis Fernandes disse...

Na carta nada está escrito sobre o nao se realizar o Festival!! Na carta está escrito, e para que o Maestro tenha conhecimento, do que tem sido feito em nome do seu sonho, a desconstruccao da identidade dos Marvanenses!! Peco por isso que as pessoas que leem a carta, a interpretem, e releiem-na se necessário para melhor entender o seu conteúdo!